quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Calhaus e Montanhas


Há um ditado popular, de origem desconhecida, que afirma que não tropeçamos em montanhas, mas sim em calhaus. A frase me veio à mente hoje, quando li o noticiário acerca das estrepolias da famiglia Lula da Silva no Guarujá e em Atibaia.

No que concerne o Guarujá, já foram tantas versões, idas e vindas na disputa da não-propriedade do famoso apartamento triplex 164-A do Edifício Solaris na bela praia das Astúrias, que sinceramente, parece algo orquestrado para confundir ou matar de tédio qualquer pessoas que tente acompanhar o caso. Lula, que só se pronuncia através do Instituto que leva seu nome, sempre na terceira pessoa, já admitiu, no passado, ser dono do apartamento. Depois, negou ser o dono. Depois, admitiu que poderia vir a ser o dono. Depois, disse que nunca foi dono de apartamento, mas apenas de uma cota da tal cooperativa habitacional dos bancários, que, talvez, quem sabe, lhe desse o direito de comprar, uma dia, um apartamento. Depois, alegou que além de nunca ter sido o dono, também tinha desistido de comprar o tal imóvel (isso já no final de 2015, quando a encrenca estava toda nos jornais). Fica difícil saber em que situação estavam, a cada momento da narrativa desconexa, Lula e dona Marisa, em relação ao tal triplex. Deve ser um dos únicos casos na história universal em que alguém, podendo comprar um apartamento que vale uns dois milhões de reais, se recusa a admitir que ele era seu pelo valor (atualizado) de 286 mil reais. Ou seja, hoje há um belo apartamento triplex, de frente para o mar, totalmente equipado ao gosto da família do ex-presidente, comprado por 286 mil reais e "devolvido" por um valor inferior a isso, e que aparentemente não tem dono. Ninguém quer ser o dono do tríplex. O imbróglio assume ares de chacota, algo que lembra um sketch antigo da Rede Globo, em que Agildo Ribeiro, com os óculos fundo de garrafa e voz anasalada que faziam dele uma paródia perfeita do notório Paulo Maluf, afirmava categoricamente que um monte de dinheiro encontrado na sua maleta "não era dele". Os bate-paus a serviço do lulismo ecoam as sucessivas versões apresentadas sem qualquer vestígio de rubor nas faces, e todos, sem exceção, pedem "provas" de que o famigerado apartamento seja de propriedade de Lula. Como se operações envolvendo laranjas deixassem documentos comprobatórios voando por aí. Contratos de gaveta, afinal de contas, costumam morar justamente nas gavetas, longe dos olhos de curiosos.

Então ficamos assim: Dona Marisa adquiriu o direito de comprar um apartamento no edifício Solaris, por 286 mil reais em valores atualizados. A não-proprietária do apartamento 164-A visitou o imóvel que não era dela em companhia do marido e do presidente da empreiteira que assumira o término da obra a pedido de Lula, quando a cooperativa que vendeu a tal "cota" foi à lona, saqueada por seus diretores petistas. Eles não visitaram o apartamento 45-C, ou 115-B, ou outro qualquer. Visitaram apenas o 164-A, aquele que "nunca foi" deles. O presidente da empreiteira travestido de corretor de imóveis, Leo Pinheiro, em seguida ordenou uma reforma completa no imóvel novo, para deixá-lo ao gosto de seus não-donos, nos mínimos detalhes. A obra incluiu a instalação de elevador privativo, construção de deck da piscina, troca do porcelanato e instalação de uma moderníssima cozinha Kitchens. Dona Marisa, a não-proprietária do apê, acompanhou de perto as obras, acompanhada do filho Fábio. A conta? Perto de um milhão de reais. Tudo bancado pela OAS, a empreiteira de Leo Pinheiro, que hoje é réu na Operação Lava-Jato, acusado de pagar propina para uma multidão de políticos e executivos da Petrobras. Não há notícia de que a OAS tenha feito alguma oferta do triplex ao casal Lula, já incorporando o valor das módicas benfeitorias introduzidas. Depois de concluídas as obras, dona Marisa e família foram lá e constataram que "não queriam mais o apartamento" porque, segundo o Instituto Lula, eles "não teriam sossego" lá. E a reforma, dona Marisa? Põe na conta do abreu, digo, do Leo. Com o caso já ganhando ares de escândalo, e a Operação Lava-Jato a pleno gás, o casal então faz um ofício à Bancoop (que além de falida, nem dona do imóvel é mais), devolvendo a "cota" e pedindo a devolução do valor pago, em 36 parcelas, com o desconto de 10%. Quanto desprendimento, não? Se eu soubesse, teria pago o valor ao casal Lula à vista, sem o desconto, para ter o direito de comprar o apartamento que vale mais de dois milhões de reais, pelo preço da "cota". Suponho que o triplex agora pertença à Bancoop. Sigo esperançoso. Quem sabe eles me vendam?

Já com relação ao sítio de Atibaia, a coisa ganha ares de pastelão. Segundo a versão oficial, o sitio pertence aos dois sócios do filho mais velho de Lula na Gamecorp (aquela, lembram?), Jonas Suassuna e Fernando Bittar. Que compraram o sitio em outubro de 2010, com Lula ainda Presidente da República. Quem cuidou dos detalhes do contrato de compra? Ora... o advogado Roberto Teixeira, que é também compadre de Lula. Aparentemente, os dois compradores "formais" não são muito ligados na vida campestre, porque não há registro de que frequentem o lugar. Lula, por outro lado, esteve lá nada menos do que 111 vezes. Parte da mudança do já ex-presidente foi levada pela transportadora Granero não para o apartamento de Lula em São Bernardo, mas para... Atibaia. O sítio entrou em reforma logo após a compra, com a reconstrução total das residências, adição de um galpão, campo de futebol, churrasqueira e, claro, um lago artificial abastecido de tilápias para quem aprecia uma boa pescaria. Lula é um adepto do esporte relaxante, tanto que sua mulher comprou um barco de alumínio e mandou entregar no sítio - dos outros - para o lazer pesqueiro do marido. A cozinha do sítio foi equipada com utensílios e móveis adquiridos na mesmíssima loja da Kitchens que forneceu a cozinha planejada daquele triplex que nunca foi da familia Lula, assim como o sítio. E quem pagou a conta? Ora, o amigo do peito Leo Pinheiro! Segundo o advogado criminalista contratado por Lula, é possível que Leo Pinheiro, numa visita ao sítio, tenha se compadecido com a simplicidade espartana do lugar, e mandado fazer a reforma toda (só de materiais de construção adquiridas numa loja da região, foram cerca de 500 mil reais). O engenheiro responsável pela obra, do quadro da Odebrecht, outra empreiteira enrolada no escândalo do Petrolão, afirmou que acompanhou a obra "nas férias", e que nada cobrou pelo trabalho. E quem pagou pela reforma toda? É confuso: numa versão foi a Odebrecht, em outra, a OAS. Nada mais natural, sendo as duas empreiteiras baianas praticamente irmãs siamesas na longa lista de crimes sob investigação do Ministério Público Federal e do Dr. Sérgio Moro. A questão não gira em torno disso, mas sim de que motivo poderia levar uma empreiteira com vultuosos negócios com o governo federal a pagar uma reforma num sítio pertencente a duas pessoas que lhe eram completamente desconhecidas. A pista para desvendar o mistério foi dada pelo ex-chefe de gabinete do governo Lula, Gilberto Carvalho, numa entrevista curiosa dada ao Jornal Nacional, ontem. Segundo o ex-ministro, mesmo que a Odebrecht tenha de fato pago a reforma, isso seria a coisa mais natural do mundo, mesmo porque o sitio não pertence, "formalmente" ao ex-presidente. Nas palavras de Carvalho, "É a coisa mais natural do mundo que você possa ter empresas contribuindo com essa ou aquela pessoa. E Lula já estava fora da Presidência na maioria desses casos. Estando fora da Presidência, Lula pode receber. Qualquer pessoa pode dar um presente que quiser a ele".

A fala do Gilberto Carvalho é preciosa, porque embute em si uma confissão velada. Ou melhor, duas. Primeiro, ao usar o termo "formalmente", o ex-ministro deixa entrever que "de fato", o sítio é mesmo de Lula. Afinal, seria absurdo imaginar que um cidadão visite uma propriedade que não lhe pertence 111 vezes, mande fazer uma reforma geral na tal propriedade que não lhe pertence, e compre um barco (de pequeno valor, admito) e mande entregar no sitio que não lhe pertence! Segundo, estabelece uma ligação umbilical entre Lula é duas empreiteiras atoladas até o pescoço na roubalheira ocorrida na Petrobras, fato já afirmado em delações premiadas de boa parte dos implicados no escândalo. E mais: a reforma teve início com Lula ainda Presidente. Configurado que as benfeitorias se destinavam a ele, o caso se enquadra na Resolução número 3, de 23 de novembro de 2000, que regulamentou o Código de Conduta da Alta Administração Federal e que veda, de forma expressa, o recebimento de quaisquer presentes oriundos de empresas que possuam negócios com o Governo Federal. E agora, meu caro "santo"?

É um fio da meada importante. Até porque pode, se puxada com inteligência, revelar outros mistérios da história recente brasileira, tais como a atuação do Lulinha na negociação com a Oi, que fez dele um milionário da noite para o dia, e que foi seguida, três anos depois, com uma providencial alteração na Lei Geral das Telecomunicações que permitiu a aquisição da Brasil Telecom pela Oi, até então proibida. E quem assinou o decreto alterando a Lei? Ele mesmo...  A Polícia Federal e Ministério Público talvez se interessem em entender essa relação fraternal entre o primogênito de Lula e seus dois sócios, tão fraternal que permite que o ex-funcionário de zoológico e agora milionário more de graça no belo apartamento de Jonas Suassuna nos Jardins, avaliado em mais de R$ 6 milhões. Como dizem, amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito...

Voltando ao calhau, em 1992 coube a uma modesta perua Fiat Elba ser a pedra na qual Fernando Collor tropeçou para o impeachment. Ele podia comprar uma centena delas, sem se abalar. Afinal de contas, o homem tem uma Lamborghini na garagem da casa da Dinda. Mas o fato é que não comprou. Ganhou. E o carrinho acabou funcionando como a evasão fiscal funcionou para Al Capone: o crime menor, que permitiu que o autor de crimes muito maiores fossem enfim punido.

Em 2016, talvez um barquinho de alumínio de 4 mil reais possa ser o calhau de Lula. Ele tem se evadido das montanhas de evidências com uma arrogância que beira o escárnio. Poderia comprar um, dois, dez sítios e apartamentos triplex. Faturou quase 30 milhões em "consultoria" desde que deixou (deixou?) a Presidência. Mas essa gente não pensa assim. Se há uma fresta por onde possa "se dar bem", não deixam de aproveitá-la. Essa mesma esperteza poderá se revelar fatídica para sua carreira política, sua auto-proclamada "santidade" e até mesmo sua liberdade. O tempo dirá. Como disse Tancredo Neves, citando um provérbio lusitano: "A esperteza, quando é muita, cresce e come o dono".  




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